Outrém
Diante da paisagem escrita pelas imagens da história oficial foram construídas muitas das bases de uma ciência racionalista e positivista que se alicerçando em classificações e categorias conduziu o olhar sobre o outro com bases e parâmetros estritamente calcados em uma só visão, a do colonizador, homem, branco, europeu. Desarticular, desconstruir e reparar historicamente os danos causados por tamanha generalização e desconhecimento da alteridade em cada especificidade cultural se tornou uma tarefa de afecção, cuidado e justiça social. No campo das artes se tornou imperativo e absolutamente necessario buscar formas, conceitos e modos de aproximação e criação estética que reivindicassem essa ética da revisão histórica das representações artísticas e de busca de uma representação mais de afeto do que de julgamento, mais de escuta do que de espelhamento, mais de impossibilidade de representação do que de configuração e generalização. Para nós parece que o cinema experimental seja o campo das artes audiovisuais que tem uma busca mais contumaz por essa forma de representação. Nos trabalhos que exibiremos nesta sessão, a tentativa de representação do outro busca mais do que encontra, se depara com a dificuldade de representação do outro e de formas bastante distintas revela o tanto de subjetividade que há em cada gesto de criação quando se aproxima de outrem.
Duo Strangloscope
Visões do Paraíso - Cris Miranda (Brasil, 23’48”)
“Visões do Paraíso” parte de uma pesquisa acerca da iconografia histórica da paisagem fluminense em torno de 1822. Reunindo as imagens deixadas pelos artistas viajantes que vieram ao Brasil no início do século XIX o filme desenvolve uma reflexão audiovisual experimental filmada em 16mm acerca das disputas pela terra durante os processos migratórios ocorridos no Rio de Janeiro, na ocasião da independência do Brasil. Colonos suíços chegaram ao Rio de Janeiro fugindo da fome a que estavam submetidos em seu país, em busca de terras para viver e prosperar. Comunidades quilombolas habitavam as montanhas há muito ocupadas por indígenas Aimorés. O filme retoma a antiga disputa de terra na Serra do Mar fluminense, em especial no território de Casimiro de Abreu, no Morro do Quilombo, desde seus primórdios até o momento atual, acompanhando a trajetória da família do quilombola Seu Cici, expulso de suas terras, tendo sua casa queimada e suas plantações destruídas, durante a ditadura civil militar em torno de 1972.
Oculto - Sebastian Wiedemann (Colombia, 8’35”)
Os corpos celestiais enunciam algo no meio de seu mistério. A lua fica vermelha, o planeta chora, a queda é mais profunda do que poderíamos imaginar. Escondido, algo espreita. No meio, um réquiem ou talvez uma elegia. A incerteza como um caminho que nos leva a uma catástrofe que não sabemos se é passada, presente ou futura. Mas que é, sem dúvida, uma memória profunda de um segredo sombrio. Os sussurros quebrados de uma selva ferida.
Tupananchiskama - Rafael de Almeida (Brasil, 7’03”)
Dizer “adeus” marca um fim, uma impossibilidade diante da continuação, uma ruptura do devir. Em quéchua, “tupanachiskama” nutre o desejo da permanência da comunhão com o outro e do compartilhar até que a vida volte a nos encontrar. Notas imagéticas ensaísticas se constroem diante de experiências de viagem entre o Peru e o Brasil. Uma reflexão sobre a despedida como uma imposição diante da impermanência das coisas do mundo, enquanto sempre se deseja a possibilidade de um novo encontro.
Faces without visage - Hesam Rahmani (Iran, 7’35”)
Como é que um silêncio sombrio afoga a mim e minha memória?
Como é que os rostos perdem a aparência nesta escura masmorra da memória?
Psychedelic Ode to Sunshine - Karl Nassbaum (EUA, 4’50”)
Minha tia Lotte era uma sobrevivente judia alemã do Holocausto que se converteu ao cristianismo durante a guerra e se tornou missionária, indo trabalhar em Angola, na África, na década de 1960. Enquanto isso, nos Estados Unidos, eu tinha 8 anos e estava visitando Haight Ashbury, São Francisco, com minha família para ver os hippies. E até hoje, ainda me arrependo de não ter ido visitar minha tia na África...
Este filme começou como um antídoto colorido e cheio de esperança durante os dias cinzentos e de quarentena no início da Covid. Foi uma diversão selvagem e animada. E então ele se transformou em um filme psicodélico para ser projetado na parte externa de nossa pequena casa branca. E depois se tornou uma celebração das eleições dos EUA em 2020... E então eu acrescentei esta história pessoal e ele se transformou nisso...
Water and More Water - Francisca Svampa (Itália, 6’)
Um retrato onírico de Barcelona, filmado em dupla exposição em filme reversível de 8mm, é entrelaçado com uma voz íntima de "eu me lembro", criando uma colagem de memórias à la Brainard e Pérec.
As microlembranças pessoais da diretora, como mulher, cineasta e imigrante, evocam o espírito de uma época que talvez nunca retorne, construindo um patrimônio comum.
O ato de fazer este filme, envolvendo a arriscada dupla exposição e a fragilidade do próprio filme físico, se torna uma metáfora para a tensão perpétua entre memória e esquecimento.
Damp Moss - Christopher Tompson (EUA, 4’22”)
Ilusões reluzentes de providência vetorizada tentam imitar um reino físico herdado de significado cada vez menor.